Após uma hora de visita guiada pela exposição “Tudo começa num ponto”, que traz obras de Wassily Kandinsky e seus contemporâneos ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), Denise Vieira tem opinião formada:
— O Kandinsky que me perdoe, mas a Camila é muito mais espetacular.
Camila Araújo Alves, de 24 anos, foi a monitora de Denise e outras 11 senhoras que estudam arte juntas e vieram de Niterói para conferir o trabalho do pintor abstrato russo. Todas no grupo saíram encantadas com o carisma da garota.
— Quando liga e marca uma visita, pode pedir que seja com você? — pergunta Kátia Malini, uma infiltrada do Jardim Botânico entre as niteroienses.
A guia esclarece que, além de nem sempre estar disponível, a ideia é que haja um rodízio entre os funcionários, mas agradece a avaliação positiva. Recebe beijos e abraços de todas, algumas com lágrimas nos olhos.
Mineira de Ponte Nova, cidade de 60 mil habitantes perto de Ouro Preto, Minas Gerais, Camila nasceu com retinose pigmentar, uma doença degenerativa da retina. Foi perdendo a visão aos poucos. Aos 11 anos, o processo acelerou: o perímetro do seu olhar diminuiu (“era como tentar ver por um tubo”). Aos 15, já estava completamente cega:
— Vieram dois ou três anos muito desorganizados, quando tive que entender o que ia fazer da vida.
As colegas do Ensino Médio, que a ajudavam em quase tudo, da leitura ao transporte, já começavam a deixar a cidadezinha, depois de aprovadas no vestibular. Camila, que lia muito mal em braile e não usava bengala, tinha a opção de passar o resto da vida em Pouso Alegre, sob os cuidados da família. Mas diz que isso nunca passou por sua cabeça.
Decidiu encarar o vestibular, procurando sempre instituições que fossem próximas de centros de referência para deficientes visuais. Escolheu o curso de Psicologia na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói (as senhoras adoraram a coincidência), e a reabilitação no Instituto Benjamin Constant, na Urca. Tinha 18 anos quando chegou ao Rio com uma amiga, seis meses antes de as aulas começarem.
— O Kandinsky que me perdoe, mas a Camila é muito mais espetacular.
Camila Araújo Alves, de 24 anos, foi a monitora de Denise e outras 11 senhoras que estudam arte juntas e vieram de Niterói para conferir o trabalho do pintor abstrato russo. Todas no grupo saíram encantadas com o carisma da garota.
— Quando liga e marca uma visita, pode pedir que seja com você? — pergunta Kátia Malini, uma infiltrada do Jardim Botânico entre as niteroienses.
A guia esclarece que, além de nem sempre estar disponível, a ideia é que haja um rodízio entre os funcionários, mas agradece a avaliação positiva. Recebe beijos e abraços de todas, algumas com lágrimas nos olhos.
Mineira de Ponte Nova, cidade de 60 mil habitantes perto de Ouro Preto, Minas Gerais, Camila nasceu com retinose pigmentar, uma doença degenerativa da retina. Foi perdendo a visão aos poucos. Aos 11 anos, o processo acelerou: o perímetro do seu olhar diminuiu (“era como tentar ver por um tubo”). Aos 15, já estava completamente cega:
— Vieram dois ou três anos muito desorganizados, quando tive que entender o que ia fazer da vida.
As colegas do Ensino Médio, que a ajudavam em quase tudo, da leitura ao transporte, já começavam a deixar a cidadezinha, depois de aprovadas no vestibular. Camila, que lia muito mal em braile e não usava bengala, tinha a opção de passar o resto da vida em Pouso Alegre, sob os cuidados da família. Mas diz que isso nunca passou por sua cabeça.
Decidiu encarar o vestibular, procurando sempre instituições que fossem próximas de centros de referência para deficientes visuais. Escolheu o curso de Psicologia na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói (as senhoras adoraram a coincidência), e a reabilitação no Instituto Benjamin Constant, na Urca. Tinha 18 anos quando chegou ao Rio com uma amiga, seis meses antes de as aulas começarem.
— Quando eu vi, já estava aqui. Teve que ser no susto — diz Camila.
Logo de cara, chamaram a atenção o inédito cheiro do mar, a multidão, o sotaque, as gírias. E os palavrões:
— Parecia que o pessoal em volta estava o tempo todo brigando! E não era nada: o carioca xinga quem é muito amigo.
Nos primeiros tempos, ela curtia pegar engarrafamento no ônibus.
— Adorava. Ficava prestando atenção nas conversas, tentava entender o trajeto. Tinha a ver com o tempo: passar mais devagar por um determinado lugar ia me ajudando a construir mais referências. Hoje em dia, tenho pavor.
Camila já se formou, está fazendo mestrado e atende num consultório. Poderia ter virado uma analista freudiana, cujas ferramentas seriam a escuta e a fala. Mas, mesmo sem poder ver, decidiu se especializar em uma linha que leva em conta, por exemplo, a postura e a respiração do paciente: a psicoterapia corporal reichiana.
— É difícil resumir. Mas, basicamente: o corpo fala — diz Camila.
Na universidade, entrou em contato com Virgínia Kastrup, psicóloga da UFRJ que pesquisa deficiência visual. Em 2010, Virgínia a indicou para ser monitora de uma exposição de Helio Oiticica na Casa França-Brasil. A ideia era colocar pessoas com outras referências sensoriais para dialogar com a obra do artista. Meio sem saber no que estava se metendo, lá se foram Camila e Pucca, sua cadela-guia. (A golden retriever a acompanha nas exposições: sabe onde parar, tira até uns cochilos.)
Após a experiência de três meses na Casa França-Brasil, ela foi chamada para uma vaga no setor educativo do CCBB. É a única pessoa cega que exerce esta função em museu do Rio.
A cada exposição que o CCBB recebe, Camila e seus colegas de setor passam pelo mesmo processo inicial: um estudo formal do artista que será apresentado, pesquisas sobre as peças que estarão presentes e encontros com os produtores e curadores de cada mostra. Sua memória, treinada desde as provas orais do vestibular, precisa dar conta do catálogo inteiro — tarefa facilitada com os softwares de voz atuais, bem mais intuitivos e fáceis de usar do que há alguns anos.
Até a chegada da mostra, o processo é igual para todos. E quando a montagem tem início, ela pode fazer algo não permitido a outros educadores.
— Sempre que há esculturas, coisas tridimensionais, peças de roupa, é permitido que eu toque antes nos objetos. Uso luvas, como o pessoal que faz a montagem — esclarece Camila, que na mostra de Kandinsky tocou em objetos dos povos siberianos antes que eles fossem para as vitrines. — É um momento muito especial. Posso entrar em contato direto com algo que está na exposição sem mediação de ninguém.
Orientar-se entre as salas do CCBB não é problema: como uma atriz de teatro, Camila sabe onde estão suas marcas naquele palco, e repete sempre um mesmo percurso. Com o tempo, Pucca também decora o caminho e serve de co-piloto. Durante o trajeto, visitantes que não estão no seu grupo reparam, apontam, e uns até perguntam:
— Ela é cega mesmo?
Para superar o fato de não ver as obras, Camila se concentra mais no conteúdo do que na forma. A cada quadro do roteiro (e até uns fora dele, que as pessoas apontam sem se dar conta de que ela não sabe qual é “aquele ali”), chama a atenção por ter decorado a localização e a cor de várias figuras. Mas estimula uma reflexão sobre a sensação que o quadro passa.
— Salvador Dalí, ano passado, foi dificílimo para mim, porque são paisagens surrealistas. A importância do que está no quadro é imensa — diz Camila. — Quando veio o Kandinsky, pensei, é fácil. Porque, se uma coisa a cegueira me trouxe, é a abstração da forma. Este é o meu dia a dia. Então fiz a festa.
A turma de Niterói também fez. No fim da exposição, em frente ao “Quadro com pontas”, pintado por Kandinsky em 1919, Camila diz para todas chegarem mais perto (ela diz que “sente um vazio” quando um grupo está distante). Estimula a professora do grupo, Célia Figueiredo, que dá aulas de arte há 20 anos, a falar sobre a pintura.
— Vai, Celinha! Toma as rédeas desse negócio.
Celinha fala um pouco da tela e logo para:
— Pronto. Queremos ouvir você.
— Que bom que vocês estão gostando — diz Camila. — No começo, achei que vocês estavam na dúvida se ia dar certo essa história de ver quadros através de uma menina que não enxerga.
Sueli Gomes traduz o que todas estão pensando:
— Quem disse que você não enxerga?
A exposição de Kandinsky fica em cartaz no CCBB até o dia 30. Camila não tem data para sair.